As Big Techs – empresas gigantes de tecnologia – são um fenômeno em análise no mundo inteiro. A entrada das grandes plataformas digitais no mercado de pagamentos, crédito, investimentos e seguros inicialmente foi vista com bons olhos por reguladores, pois tem o potencial de trazer ganhos de eficiência ao setor financeiro e de promover inclusão financeira.
Apesar dos potenciais benefícios, existe, no atual momento, um movimento global de regulação das Big Techs, afetando empresas como Facebook, Google, Ant, Tencent, Amazon, entre outras. Embora o primeiro ciclo regulatório-legislativo focado em Big Techs gire em torno de questões relacionadas à defesa da concorrência e à proteção de dados pessoais, já é possível enxergar uma extensão para preocupações relacionadas à estabilidade financeira.
A entrada das Big Techs nos serviços financeiros
As Big Techs são grandes empresas de tecnologia que conectam milhões de usuários por meio de plataformas na internet. Ao contrário das fintechs, empresas que aplicam o uso de tecnologias inovadoras no setor financeiro, as Big Techs desenvolvem soluções de tecnologia para um amplo escopo de atividades econômicas.
O foco do modelo de negócios pode estar nas redes sociais, como o grupo Facebook, em mecanismos de busca, como o Google, ou no e-commerce, a exemplo da Amazon e do Alibaba. Segundo levantamento publicado pelo BIS em 2019, apenas 11% da receita das Big Techs são decorrentes de serviços financeiros.
A capacidade de transformar a atividade online de usuários em inteligência por meio do Big Data e o know-how na criação de serviços digitais favorece a difusão das Big Techs para vários ramos de atividade. Na última década, os serviços financeiros foram um dos eixos de expansão. A entrada ocorreu principalmente por meio de serviços de pagamentos, mas também pela oferta de crédito a consumidores e micro e pequenos empresários.
No caso das plataformas de e-commerce, a criação de soluções de pagamentos é uma expansão natural do negócio para gerar mais confiança nas transações online. Este foi o caso do Ali Pay, arranjo de pagamentos mobile do Ant Group, a spinoff financeira do Alibaba.
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Como as Big Techs mudam o cenário do mercado financeiro
De modo geral, o uso de novas tecnologias permite ampliar a oferta de serviços financeiros, de pagamentos e seguros com modelos escaláveis e custos reduzidos. A entrada das grandes empresas de tecnologia promete ganhos adicionais de eficiência pela possibilidade de alavancar o grande número de usuários e dados gerados.
As principais vantagens competitivas das Big Techs em relação aos bancos tradicionais são uma base de usuários muito maior, tecnologia atual e mais adequada à oferta de novos serviços, além de maior proficiência na gestão e uso dos dados.
Devido ao baixo custo adicional em expandir um serviço digital para um número maior de pessoas, é possível ofertar serviços financeiros básicos a um preço mais baixo. Além disso, com a disseminação do uso de smartphones e a expansão da rede de dados móveis 3G/4G, os serviços digitais podem chegar em lugares onde agências bancárias não chegam. Dessa forma, a oferta de serviços como contas digitais e meio de pagamento mobile pelas Big Techs pode contribuir para a inclusão da população de desbancarizados.
Um dos principais âmbitos em que as Big Techs mudam o cenário a favor da inclusão financeira é na oferta de crédito para consumidores e pequenos negócios – seja criando linhas de crédito próprias ou se unindo a instituições financeiras para distribuir seus produtos.
Como as plataformas digitais coletam um alto volume de dados sobre os usuários, elas têm mais informações para estimar o perfil de risco dos clientes e reduzir as chances de inadimplência, mesmo quando estes não têm registro formal de operações bancárias. Assim, as Big Techs estão numa posição vantajosa para oferecer empréstimos para um público que hoje está fora do mercado de crédito formal.
Reguladores respondem à presença das gigantes da tecnologia no sistema financeiro
Tudo indica que a participação das Big Techs no setor financeiro seguirá uma trajetória crescente no futuro. Além de terem um modelo de crescimento que aproveita a diversificação de atividades, as empresas de tecnologia podem se beneficiar de outras tendências observadas em sistemas financeiros ao redor do mundo a favor da abertura da participação de novos atores.
Alguns exemplos emblemáticos da aposta das Big Techs nesse sentido são o anúncio de uma carteira de moedas digitais pelo Facebook (o Diem, lançado em 2019 como Libra) e a expectativa recordista para o IPO do Ant Group (suspenso em novembro de 2020). Frente a esse cenário, as autoridades governamentais estão atentas para evitar quaisquer perturbações que possam surgir da presença das gigantes da tecnologia e impedir o aproveitamento dos benefícios tratados acima.
Vale notar que nem toda regulação é voltada para restringir as Big Techs, a exemplo do Open Banking. Ao mesmo tempo em que as Big Techs terão mais acesso a dados por meio do Open Banking, haverá mais transparência sobre as condições em que os dados dos clientes são coletados e compartilhados. Além disso, a portabilidade de dados fortalece a concorrência, pois empresas grandes e pequenas poderão ter acesso aos dados dos usuários, desde que obtenham sua autorização.
Reflexos das Big Techs para a estabilidade financeira
Na economia de plataforma, as empresas se beneficiam do chamado efeito de rede: quanto mais usuários há em uma ponta da plataforma (por exemplo, número de vendedores na Amazon), maior o valor da plataforma para os usuários na outra ponta (ex.: consumidores).
Isso faz com que as Big Techs possam crescer de forma acelerada de uma hora para outra. No caso dos serviços financeiros, especialmente quando falamos de Big Techs que oferecem crédito, isso pode apresentar um risco à estabilidade de todo o sistema financeiro.
Há uma série de regras que bancos e demais instituições financeiras devem cumprir para mitigar o risco de crises que afetem todo o sistema financeiro. A princípio, tais requerimentos não se aplicam às empresas de tecnologia, o que significa que a emissão de crédito por essas empresas não é necessariamente garantido por uma reserva de capital que reduza o risco de default.
Por causa do seu tamanho, as Big Techs podem se tornar sistemicamente relevantes. As recentes restrições impostas pelas autoridades chinesas à atuação financeira da Ant atuam exatamente sobre esse problema.
Proteção de dados e abuso de poder de mercado
Um ponto que já chamou a atenção de alguns reguladores é a vantagem que as Big Techs têm em comparação a outros players na obtenção de dados sobre potenciais clientes, por causa da grande base de usuários e da oferta de diferentes serviços.
Um exemplo emblemático é o caso do Facebook, por exemplo, que dispõe de informações variadas sobre mais de 3 bilhões de pessoas por meio dos seus quatro produtos principais (a própria rede social do Facebook, o Instagram, o WhatsApp e o Messenger).
Quantidade de usuários ativos dos produtos Facebook (Facebook, Whatsapp ou Instagram) por trimestre (em bilhões)
A autoridade concorrencial alemã identificou que a empresa estava coletando dados dos usuários nesses produtos e em milhões de sites de terceiros sem a anuência dos usuários, o que configuraria uma prática abusiva na lei de mercados alemã. O caso resultou não apenas em um processo contra o Facebook, mas uma adaptação da lei concorrencial para o mundo digital, viabilizando a ação do regulador antes que o abuso (coleta não autorizada e combinação de dados) aconteça.
Outro ponto de atenção para os reguladores é evitar que as Big Techs se aproveitem do seu tamanho e escopo para estabelecer condutas de mercado que potencialmente podem ser consideradas abusivas por órgãos de defesa da concorrência. Alguns exemplos são a exigência de exclusividade para participar na plataforma, o uso de algoritmos e Big Data para diferenciar preços (estimando o perfil de usuário para cobrar de cada pessoa o maior preço que ela pagaria) e o bundling – oferta conjunta de serviços numa mesma plataforma.
Desde 2019, uma regra na Índia para o investimento estrangeiro em e-commerce busca impedir que as Big Techs como Walmart e Amazon privilegiem as vendas dos próprios produtos no marketplace e prejudiquem os vendedores indianos. Segundo reportou a Reuters, as Big Techs criaram alguns subterfúgios para contornar a regra, sobretudo por meio de aquisições de participações indiretas de vendedores indianos, o que vem motivando os reguladores a criarem mais restrições.
Concorrência e crédito ao consumidor: os alvos da regulação na China
Na China, as fintechs vinham crescendo com relativa liberdade. O fato de mais de 90% dos pagamentos mobile realizados na China serem feitos por duas Big Techs (Ali Pay, do grupo Ant, ou WeChat Pay, da Tencent) é uma mostra disso.
Segundo matéria da Bloomberg, no início de 2021, alguns meses após a suspensão do IPO da Ant Financial, a gigante da tecnologia e os reguladores financeiros chegaram a um acordo para que a empresa assuma a condição de conglomerado financeiro. Com o novo status, a Ant passa a ter que cumprir as normas atribuídas a empresas que operam em vários ramos do sistema financeiro, inclusive requisitos mínimos de capital.
Além disso, a comissão que regula o setor financeiro na China definiu, em fevereiro deste ano, novas regras para a emissão de empréstimos pela internet a fim de reduzir a exposição a risco do sistema financeiro.
Segundo o jornal South China Morning Post, a emissão de crédito pelas gigantes da tecnologia cresceu 42% entre 2018 e 2019, e essa expansão é baseada em parcerias das Big Techs com bancos comerciais. Nesse modelo, a Big Tech tem o relacionamento com o cliente, mas quase todo o valor do empréstimo é concedido pelos bancos, que assumem o risco da operação.
Entre outros requisitos, a nova regulação impõe a “regra dos 30%”, que força as plataformas a comprometerem uma parcela maior de capital próprio em cada empréstimo realizado. Essa medida reduz as chances de as Big Techs emitirem crédito além da sua capacidade de financiamento.
As duas iniciativas avançam no sentido de aumentar os requisitos de capital que as Big Techs atuantes no setor financeiro precisam cumprir, aproximando a regulação das Big Techs da regulação de instituições financeiras. O objetivo é evitar que a oferta de crédito via plataformas digitais (Ant, JD.com, Tencent e outras) cresça além da capacidade de financiamento do sistema financeiro chinês.
Outra frente de ação adotada na China são as políticas antimonopólio. Em fevereiro deste ano, a autoridade chinesa reguladora do mercado, SMAR, publicou um conjunto de regras antimonopólio para as plataformas digitais. Entre as diretivas, está a proibição de cláusulas de exclusividade e de fixação de preços por meio de abuso do uso de dados. As regras afetarão as gigantes do e-commerce, Alibaba e JD.com, bem como o duopólio de pagamentos mobile de Ant e Tencent.
Em paralelo a essas iniciativas, o Banco Popular da China (BPC) pressiona as firmas de tecnologia que fornecem empréstimos em suas plataformas para compartilhar os dados sobre essas operações. Em 2018, o governo chinês criou uma agência de score de crédito individual na forma de empresa público-privada e deu 8% das ações para Ant e Tencent e outras fintechs. Em 2020, outra agência no mesmo formato foi criada com a participação de subsidiárias da gigante do e-commerce JD.com, da Xiaomi e de uma empresa de reconhecimento facial, a Megvii.
As duas agências são supervisionadas pelo BPC. O objetivo é que as empresas de tecnologia compartilhem com as novas agências suas bases de dados sobre o perfil de risco dos residentes e empréstimos realizados. Com isso, ao mesmo tempo em que o sistema financeiro nacional ganha visibilidade sobre os milhões de clientes desbancarizados atendidos pelas Big Techs chinesas, o BPC espera aumentar a supervisão sobre o microcrédito em plataformas, mitigando riscos de inadimplência e deterioração da carteira de ativos.
Enquanto as grandes plataformas digitais podem trazer benefícios à sociedade com a expansão da oferta de serviços financeiros básicos, como pagamentos digitais rápidos e seguros e crédito para pequenas empresas, autoridades públicas já indicam potenciais riscos associados à entrada das Big Techs no mercado financeiro. Cabe aos reguladores encontrar o equilíbrio entre fomentar a entrada de novos atores no mercado e evitar riscos de dimensão ainda desconhecida. Em última instância, esta é uma escolha que cabe a cada sociedade e pode inclusive mudar ao longo do tempo – como foi o caso na China.
| Confira também o podcast Cashless, com Carlos Ragazzo e Bruna Cataldo: Big Techs e regulação: reflexos no sistema financeiro