Open Banking e Demanda: Programas de Capacitação Financeira

O artigo publicado no Boletim Econômico Capixaba aborda a importância de desenvolver a capacidade financeira na população e questiona o que é necessário para potencializar os benefícios econômicos e sociais das inovações financeiras que ganharam tração no Brasil em 2020.
Open Banking e Demanda: Programas de Capacitação Financeira
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Instituto ProPague + IDEIES
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Artigo publicado no Boletim Econômico Capixaba, produzido pelo Observatórios Ideies, entidade do Sistema Findes.

Autores: Carlos Ragazzo, professor da FGV-Rio e Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Propague, e Bruna Cataldo, pesquisadora associada ao Instituto ProPague.

Open Banking e Demanda: Programas de Capacitação Financeira

A expansão das inovações financeiras – motivadas por um acelerado processo de digitalização e movimentações coordenadas de reguladores – é uma tendência mundial que percorre países de diferentes graus de desenvolvimento. O Brasil figura na fronteira dos acontecimentos regulatórios do setor financeiro, sendo puxado pelo crescimento da participação das Fintechs no país na última década e por uma ação ativa do Banco Central com a Agenda BC#, inspirada em um caminho previamente traçado por outros órgãos reguladores como o European Central Bank (ECB) – sobretudo por meio da diretiva regulatória PSD2, que deu início ao movimento do Open Banking na União Europeia – e o Reserve Bank of India (RBI) e o National Payments Corporation of India (NPCI) – principalmente por meio da criação da plataforma de pagamentos instantâneos UPI.

Em particular, o movimento regulatório de Open Banking tem por propósito incentivar a criação de produtos mais adequados a diferentes perfis de consumidores, por meio da possibilidade de compartilhamento de informações, mediante consentimento, o que acaba com o monopólio de dados hoje nas mãos das grandes instituições financeiras. Uma frente específica que ele influenciará se dá na oferta mais personalizada e variada de crédito, com uma expectativa de atrair micro e pequenos empreendedores até então na margem do sistema financeiro formal.

Assim, se cria uma estrutura regulatória para viabilizar maior competição, permitindo a pluralização dos serviços financeiros, o que, por sua vez, tem potencial impacto relevante de inclusão financeira, mesmo diante dos desafios de digitalização e das barreiras culturais e socioeconômicas.

Só que há um passo/preocupação adicional para fazer com que esse movimento regulatório alcance o seu real potencial de transformação: além de estar incluído e visível para o sistema financeiro, é preciso que o empreendedor seja capaz de navegá-lo e de fazer escolhas adequadas e conscientes. No caso de Micro e Pequenas Empresas (MPEs), capacitar financeiramente empreendedores é considerado um princípio fundamental para que elas prosperem, o que envolve a combinação de conhecimentos, habilidades, atitudes e comportamentos que permitam tomar decisões financeiras eficazes para iniciar, administrar e garantir a sustentabilidade e crescimento do negócio.

Desenvolver a capacidade financeira dos consumidores se torna particularmente importante nos próximos anos, com a diversificação de produtos que o Open Banking irá produzir. Parte desse trabalho será feito pelos próprios ofertantes, mesmo porque a necessidade de uma melhor experiência com o produto será fundamental para o engajamento dos consumidores.

Mas é preciso discutir iniciativas privadas e públicas capazes de desenvolver capacitação financeira, para que empreendedores possam não apenas enxergar as inúmeras possibilidades que surgem a partir da tomada de crédito, mas principalmente saber escolher entre um menu maior de alternativas.

Caso contrário, há evidências de que o aumento de opções pode inclusive ser prejudicial para a saúde financeira dos empreendedores, uma vez que, se não houver conhecimento suficiente, o aumento do consumo de crédito poder levar a superendividamento e não a desenvolvimento.

Esse problema se estende a toda ideia de cidadania financeira: pessoas que não conseguem navegar o sistema financeiro adequadamente podem ter perdas de bemestar, por não conseguirem poupar para o futuro, usufruir de oportunidades de financiamento em negócios, gastar excessivamente por dificuldades com gestão orçamentária, dentre outros problemas.

Torna-se uma questão social em que a falta de capacidade financeira pode prejudicar o pleno exercício da cidadania e funcionar como mais uma das dinâmicas que contribuem para pobreza e desigualdade. Essa relevância já é inclusive reconhecida pelo Banco Central, que associa o desenvolvimento de capacidades ao atendimento das condições de cidadania financeira, à qual atribui benefícios ao bem-estar, saúde, pobreza, igualdade como todo e de gênero, além de estabilidade e crescimento econômico.

Esse tema se mostra particularmente relevante porque os indicadores de capacidade financeira no Brasil ainda mostram um cenário desafiador diante das prováveis oportunidades que serão trazidas por movimentos como o Open Banking. Na pesquisa realizada pela OCDE para medir a capacidade financeira dos países do G20, o Brasil pontuou abaixo da média não só do G20, mas também dos países da América Latina. A pesquisa analisa conhecimentos, habilidades e atitudes básicas com relação aos aspectos financeiros da vida como: tomada de decisões financeiras no dia-a-dia para si e para o domicílio, comportamentos orçamentários, formas de poupança, resiliência financeira a choques externos, planejamento para aposentadoria, conhecimento de produtos financeiros, escolha de produtos financeiros, como a escolha de produtos é feita e quais informações a influenciam, conhecimentos de matemática como divisão, juros simples e juros compostos e conhecimentos sobre diversificação, inflação e relação entre risco e recompensa.

Analisando alguns indicadores específicos do país, apenas 63% dos brasileiros tenta tomar decisões financeiras bem informadas; ou seja, buscam ativamente informações sobre as características importantes de um produto ao fazer uma escolha. Idealmente, essas informações devem ser imparciais para que a pessoa faça comparações tanto entre produtos, quanto entre fornecedores. Isso envolve algum grau de resolução de problemas, análise crítica e conhecimento sobre conceitos financeiros chave, área em que o Brasil tem problemas. Dois em cinco brasileiros não conseguiram responder o que é inflação, apenas 50% conseguem calcular um montante de principal mais juros, só 30% conseguem calcular juros compostos para um período de 5 anos e apenas 18% acertam perguntas tanto de juros simples como compostos.

Juntando os resultados mencionados acima, o indicador de conhecimento financeiro do Brasil é de 48%: ou seja, mais da metade dos brasileiros não alcança o score básico de conhecimento. Além disso, 50% dos brasileiros não alcança scores mínimos de atitude financeira, indicador que mede as preferências de curto prazo que podem dificultar o desenvolvimento de melhorias de resiliência financeira e bem-estar.

O problema não é exclusivo do Brasil: apesar de estar abaixo das médias do G20 em diversos indicadores, a maioria dos países apresenta números insuficientes. No entanto, o Brasil tem um desafio adicional para a capacitação, por ser um dos países em que foi identificada uma tendência de as pessoas superestimarem seu conhecimento financeiro, o que pode ser um entrave relevante para estimular empreendedores a buscar programas de qualificação.

Esses dados evidenciam que qualquer intervenção focada no desenvolvimento de capacidade financeira das MPEs terá que lidar com a questão de capacidade financeira pessoal básica do brasileiro, especialmente considerando o perfil socioeconômico de uma parcela grande dos empreendedores por trás dessas empresas e a informalidade.

O desenvolvimento de capacidade financeira é particularmente relevante para a tomada de crédito, sendo que este é um empecilho significativo para o desenvolvimento de MPEs. Financiamento é um dos principais entraves identificados para criá-las e fazê-las crescer, sendo que uma das causas de dificuldade para se financiar é justamente a falta de capacidade financeira individual do empreendedor.

Exemplos internacionais de programas de capacitação financeira demonstram resultados positivos trazidos por iniciativas voltadas para pequenas empresas.

Embora os exemplos de políticas/iniciativas não sejam numerosos, Atkinson (2017) demonstrou que projetos de capacitação financeira aumentam a probabilidade de empréstimos serem pagos corretamente, reduzindo ainda os índices de fracasso do negócio, experiência essa corroborada por empréstimos tomados por empreendedores canadenses em programas da Canadian Youth Business Foundation. E o mesmo ocorre em países em desenvolvimento: no Quênia, programas de capacidade financeira focados especificamente em MPEs geraram aumento das receitas, melhorando a sua gestão de crédito, o que teve um impacto positivo e sistêmico no portfólio de empréstimos.

Além de programas específicos, há países que possuem ferramentas de consulta com fins informativos voltadas especificamente para crédito. A Austrália, por exemplo, possui uma plataforma digital chamada “Seeking Finance”, na qual são oferecidos materiais e cursos que ensinam empreendedores potenciais e já detentores dos seus negócios diferentes formas de conseguir financiamento. Os materiais vão desde guias básicos chamados “101 guide: reasons and options for seeking finance”, a tutoriais e artigos temáticos com diferentes graus de dificuldade (ex: como aplicar para financiamento, como valorizar um negócio, como fazer um crowdfundind, como aplicar para venture capital etc.). Já no Reino Unido, a “UK Finance” oferece treinamentos, workshops, webminars e e-learning para o grupo de empresas que representa nas áreas de crédito, pagamentos e prevenção contra fraudes, possuindo guias específicos para MPEs. Funciona a partir de assinaturas para que as empresas se tornem membros e possam acessar os treinamentos.

Para além de iniciativas nacionais, a OCDE e a Comissão Europeia construíram estruturas de competências financeiras especificamente voltadas para empresários de MPEs. As matrizes de habilidades desenvolvidas a partir da metodologia de inventário de boas práticas objetivam informar a implementação de políticas, sejam estratégias nacionais, programas públicos locais ou até privados. A OCDE recomenda que a capacitação foque em 3 áreas: conhecimento, habilidades e atitudes. No que tange à questão do crédito e focando no conhecimento básico e voltado para informais e MPEs, se entende por conhecimento o empreendedor (i) ser capaz de saber quanto dinheiro precisa para iniciar o negócio e se tornar operacional, (ii) entender quanto do capital inicial para o empreendimento precisa ser captado em fontes externas, e (iii) as implicações da obtenção de financiamento de diferentes fontes (incluindo família e amigos).

Já habilidades básicas a serem objeto de iniciativas de capacitação financeira incluem o desenvolvimento de aptidão para: (i) avaliar o custo real de abertura de uma empresa e desenhar planos concretos para atender a esses custos, (ii) conseguir tomar decisões informadas sobre financiamento, identificando custos e benefícios de diferentes opções, e (iii) buscar ativamente diferentes provedores de financiamento. Por fim, o programa precisa focar em criar atitude de confiança para navegar por diferentes tipos de financiamento de diferentes tipos de provedores.

A Comissão Europeia segue na mesma linha, considerando ser necessário que os empreendedores sejam capazes de desenhar um orçamento e usar recursos de maneira responsável no nível básico, encontrar diversas fontes de financiamento e gerenciar o orçamento a partir dessas opções no intermediário, definindo estratégias para mobilizar recursos para fazer planos de longo prazo sustentáveis financeiramente no avançado. Muda a forma de apresentação, mas o quadro geral de habilidades apontados como boas práticas para políticas de capacitação em crédito é o mesmo.

Olhando para como a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF) do Brasil se relaciona com esses diagnósticos, é possível notar que existe espaço, privado e público, para desenvolver iniciativas de capacitação focadas para reagir às mudanças regulatórias
atualmente em curso, sobretudo diante da possibilidade de inclusão maior de empresas no perfil de MPEs.

A estratégia reúne representantes de 8 órgãos e entidades governamentais, que formam o Fórum Brasileiro de Educação Financeira (FBEF). As ações são compostas por programas transversais e setoriais que são coordenados de maneira centralizada, mas executados de forma descentralizada.

É importante notar que, apesar de as MPEs serem contempladas como público específico de iniciativas de capacitação executadas na ENEF, 78% das ações são genéricas, não tendo público-alvo específico no recorte de porte de empresa. No entanto, com o potencial trazido pelo Open Banking faz sentido focar nas MPES, dado que as habilidades adequadas de escolha e gestão de crédito não são as mesmas entre um microempreendedor informal, o dono de uma pequena ou média empresa e o de uma grande. Esse é um ponto de atenção, dado que é de se esperar que o grau de capacidade financeira individual de partida também seja consideravelmente díspar, dificultando que intervenções genéricas sejam capazes de beneficiar a todos. Além disso, outro ponto importante diz respeito ao fato de que, atualmente, a grande parte das iniciativas está voltada para jovens: 88% tem como público-alvo a comunidade escolar ou universitária, sendo que 58% são realizadas em escolas.

No entanto, embora o foco nas gerações futuras faça sentido, o potencial regulatório transformacional do Open Banking somente poderá ser atingido com ações específicas para a população adulta, empreendedores presentes e potenciais, cujas dificuldades com habilidades financeiras básicas representam barreiras para desenvolvimento no mundo dos negócios, lembrando que financiamento é um dos principais desafios.

Essa frente pode avançar a partir das ações setoriais da ENEF que já foram desenvolvidas, como as tecnologias sociais criadas no trabalho com mulheres beneficiárias de programas de transferência de renda e aposentados, o programa BC Cidadania do Banco Central, e os portais digitais organizados pela CVM e Febraban, o “Portal do investidor” e o “Meu bolso em dia” respectivamente. O primeiro possui foco em materiais voltados para investimentos e mercado de capitais, mas também tem apostilas para módulos de ensino de crédito. O segundo tem foco no relacionamento com instituições bancárias em diferentes frentes, crédito sendo uma delas. Pensar em algo semelhante com foco maior em crédito – nos moldes do Reino Unido e Austrália – ou adaptar os materiais de
crédito para a nova realidade regulatória são possíveis caminhos dentre muitos que podem ser trabalhados internamente pelo Fórum responsável pela política para englobar essas novas frentes e encontrar gaps que precisem de novas ações. Além de aproveitar estruturas já existentes, é possível repensar a estratégia de implementação de ações setoriais com público alvo adulto para além dos dois grupos atuais – mulheres e aposentados – e incluir empreendedores especificamente como uma opção para incentivar novas iniciativas.

As mudanças regulatórias atualmente em curso têm o condão de retirar barreiras históricas à competição no setor financeiro brasileiro, abrindo espaço para reverter quadros estruturais que impedem um maior desenvolvimento econômico, sobretudo a partir
do fomento de MPEs. Diante do provável cenário de redução de preços e de diversificação na oferta de produtos financeiros que o Open Banking produz, as iniciativas de capacitação servirão para potencializar essa transformação, concretizando o conceito de cidadania financeira no Brasil.

Referências Bibliográficas:

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