Desde a crise de 2008, a regulação financeira tradicional volta seus esforços para regras prudenciais e de proteção ao cliente, ou seja, focada no produto e na relação da instituição financeira com o usuário final. Mas inovações tecnológicas recentes têm alterado de forma disruptiva os modelos de negócio e os processos internos das instituições no setor financeiro.
Enquanto o mercado se adapta às novas tendências, surgem novos tipos de riscos, sobretudo relacionados à infraestrutura do sistema, de modo que a regulação no setor parece caminhar para um foco nessa área nos próximos anos. Autoridades vêm se manifestando sobre o assunto, o que sugere o surgimento de um novo modelo para regulação financeira.
Tendências tecnológicas nos serviços financeiros
A digitalização vem mudando a economia de forma estrutural: desde a relação com o consumidor, até os processos pelos quais as empresas se organizam. No setor financeiro, isso é visível com a prevalência cada vez maior do mobile banking, que permite que os clientes acessem serviços financeiros de forma remota.
Mas, para além do que se pode ver enquanto cliente, existe todo um backstage representado pela tecnologia que vem sendo usado para dinamizar a infraestrutura do setor, como as novas soluções de armazenamento e processamento de dados, por exemplo. Em relatório publicado pela Capgemini em 2022, um destaque de tecnologias que prometem alterar os modelos de negócios no setor financeiro foi o banking-as-a-service.
O banking-as-a-service é um modelo de negócios em que uma instituição financeira entra como fornecedora da infraestrutura necessária para que terceiros de fora do setor possam oferecer serviços financeiros aos seus clientes. Também é conhecido como embedded finance, pois faz com que empresas não financeiras “incorporem” serviços financeiros ao seu modelo de negócios.
Funciona como um sistema “white-label”, em que o produto final tem a marca da empresa que tem contato com o consumidor final, mas a infraestrutura financeira é viabilizada por uma instituição que tenha as autorizações e tecnologias adequadas para viabilizar as transações. Isso possibilita, por exemplo, que lojas de varejo ofereçam cartões de crédito próprios sem precisar se tornar formalmente uma instituição financeira, já que a infraestrutura será fornecida em nuvem por um terceiro no modelo as-a-service.
O uso de inteligência artificial para análise de dados também tem sido destacada, inclusive no relatório da Capgemin, seja na relação direta com o cliente ou com soluções para a otimização de processos internos da instituição financeira. O relatório mostra que o uso de intelligent automation (modelo que combina automação de processo e inteligência artificial) vem se intensificando no sistema financeiro de diversas formas.
Ele pode ser usado para agilizar e personalizar a experiência do usuário, em linha com as demandas das novas gerações; para fazer gestão de ativos em tempo real; para auxiliar na tomada de decisão; agilizar processos internos e outros. Por outro lado, chama a atenção, por exemplo, o potencial na intensificação dos viés que essa tecnologia pode trazer, dificultando o acesso de diversos grupos sociais ao sistema financeiro.
Essas tendências de participação cada vez maior de tecnologias e plataformas nos desenvolvimento dos serviços financeiros evidencia uma limitação da regulação financeira focada na relação com o cliente final.
Essas tendências de participação cada vez maior de tecnologias e plataformas nos desenvolvimento dos serviços financeiros evidencia uma limitação da regulação financeira focada na relação com o cliente final, que agora precisa dar conta, também, das tecnologias e infraestruturas que têm tornado possível a modernização do sistema, sobretudo porque o uso dessas novas tecnologias deve ganhar ainda mais impulso com a consolidação dos projetos de Open Finance.
Essa preocupação com uma possível mudança no funcionamento estrutural do sistema financeiro tem levado autoridades a testar novas abordagens regulatórias, a fim de, justamente, orientá-las na direção de promover o máximo de inovações possíveis minimizando os riscos ao consumidor e ao sistema.
Regulação financeira de olho na infraestrutura tecnológica
O Banco Central da Malásia (BNM) emitiu em 2020 o Documento de Política sobre Gestão de Riscos em Tecnologia, que foi atualizado em 2022 com diretrizes para as instituições financeiras acerca da gestão dos riscos associados ao uso de tecnologia em nuvem. O documento mais recente estabelece responsabilidades para as instituições financeiras acerca do contrato de serviço em nuvem, segurança de dados, além de regras de avaliação de impacto e protocolos para situações de crise, como a prescrição de procedimentos de backup.
A autoridade mostra, assim, preocupação da regulação financeira acerca dos riscos de fraudes e ataques cibernéticos, além da preocupação com a segurança de informação, uma vez que o uso de serviços de armazenamento em nuvem vem crescendo no sistema financeiro, aumentando a exposição a esses riscos.
Outro caso que chama atenção é o de Singapura, que tem uma Estratégia Nacional de Inteligência Artificial (IA) desde 2019, dentro da qual a Autoridade Monetária de Singapura (MAS) anunciou o Programa Nacional de IA. Nele, o MAS busca estimular e orientar o uso de soluções de IA no sistema financeiro.
Lançado em 2021, o programa busca melhorar a identificação de transações ilícitas; aprimorar a análise de risco e tomada de decisão; sofisticar a análise de dados em finanças verdes, entre outras. O programa também oferece financiamento e compartilhamento de dados governamentais para iniciativas que visam implementar o uso de IA em processos de governança, estabelecendo princípios éticos, responsabilidades e transparência no processamento dos dados com IA. Isso mostra que a autoridade oferece uma regulação financeira propositiva, preocupada em incentivar a adoção da tecnologia, mas que está de olho nos principais riscos associados, em especial os de viés, ética e privacidade.
Tendências de regulação financeira e infraestrutura se espalham pelo mundo
Além da Ásia, há movimentos também na União Europeia, Reino Unido, EUA e Austrália, estes últimos mais voltados para a discussão da entrada das Big Techs no mercado financeiro. Ainda assim, a tendência parece ser expandir o debate da regulação financeira. A discussão específica de IA, por exemplo, já está bastante disseminada enquanto interesse relevante para os reguladores do sistema financeiro, ainda que não necessariamente tão madura em termos de consensos e marcos regulatórios bem definidos.
No Brasil, o mesmo é verdade. Aqui, o Banco Central tem promovido grupos de trabalho e discussões sobre ambos os temas: tanto o uso de tecnologias como nuvem e inteligência artificial por instituições financeiras e de pagamentos, como a própria discussão relacionada às Big Techs.
Esses movimentos dos reguladores sugerem a busca por um novo leque de instrumentos regulatórios focados em novos objetos. No caso, as infraestruturas tecnológicas. Não significa renunciar ao perfil regulatório já existente, mas uma adaptação e complementação para responder às transformações do setor. O cenário de hoje sugere que, no futuro, a regulação financeira esteja mais voltada para a infraestrutura tecnológica.
Morgana Tolentino é pesquisadora do Instituto Propague e mestranda em Economia pela UERJ.