As criptomoedas sempre se depararam com alguma resistência como meio de pagamento. O cenário parecia estar mudando com iniciativas como as da Visa e da Mastercard que lançaram cartões cripto, reforçadas ainda por uma pesquisa realizada nos Estados Unidos, que mostrava as moedas digitais privadas na mira do varejo para atrair mais clientes. Porém, em meio ao que parecia promissor, no início de 2022, o chamado “inverno cripto” chegou, interrompendo a escalada desses ativos digitais. Agora, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) dedicou um capítulo de 42 páginas do seu relatório econômico de 2022 sobre o futuro do sistema monetário digital, e ele não inclui cripto.
Embora reconheça as contribuições do universo das criptomoedas para os avanços tecnológicos das finanças, citando a programação e a tokenização, o BIS afirma que um sistema monetário baseado em uma representação digital do dinheiro tendo como pedra angular as moedas digitais de banco central (CBDCs na sigla em inglês) combinaria inovação com atributos essenciais como segurança, estabilidade, responsabilidade, abertura e eficiência.
Além disso, afirma, um sistema monetário digital desenhado dessa forma seria capaz de se adaptar continuamente para atender ao interesse público. Essa visão se baseia na confiança depositada nos bancos centrais, reforçando a presença da versão digital das moedas soberanas emergindo em seu núcleo.
“Nossa ampla conclusão é de que qualquer coisa que as criptomoedas possam fazer, as CBDCs podem fazer melhor”, disse o consultor econômico e chefe de pesquisa do BIS, Hyun Song Shin, durante a coletiva de imprensa para a apresentação prévia do capítulo sobre a visão de futuro do sistema monetário, feita dias antes do lançamento do relatório econômico anual completo.
Por que criptomoedas não podem ser a base de um sistema monetário
O argumento do BIS para deixar as criptomoedas fora de sua visão de futuro reside em falhas fundamentais que, na sua avaliação, as tornam inadequadas como alicerce de um sistema monetário. Segundo a entidade, apesar de a tokenização e a programabilidade serem avanços genuínos, as blockchains privadas e descentralizadas não são necessárias para colher seus benefícios.
Nesse sentido, a publicação examina as limitações estruturais das criptomoedas e das finanças descentralizadas (DeFi na sigla em inglês), descrevendo os riscos inerentes ao seu design. Para o banco, a recente turbulência do mercado e o colapso nos preços das principais stablecoins são lembretes de que as criptomoedas não são dinheiro sólido.
Conforme disse, intermediários não regulamentados ou não conformes e limitações estruturais impedem a escalabilidade dessas moedas e introduzem novos riscos financeiros. Embora inovações como a capacidade de programar pagamentos e transferências ofereçam vislumbres de possibilidades tecnológicas, criptomoedas não podem atender a requisitos fundamentais para um sistema monetário digital utilizável, como segurança e estabilidade, responsabilidade, eficiência e integridade.
Onde entram as stablecoins e por que elas falham
Outra limitação das criptomoedas apontada pelo BIS é a ausência de uma âncora nominal estável. O banco explica que em termos de política monetária, esse é um instrumento – como uma paridade cambial – capaz de controlar o nível dos preços.
Dessa forma, as stablecoins, que são criptomoedas vinculadas a moedas soberanas, são a tentativa do universo cripto na procura por tal âncora, disse Shin. Para ele, o que ocorre é que as stablecoins tentam se servir da estabilidade proporcionada pelo dinheiro emitido pelos bancos centrais.
“Fornecer a unidade de conta para a economia é o principal papel do banco central. O fato de as stablecoins quererem importar a credibilidade do dinheiro do banco central é altamente revelador das deficiências estruturais das criptomoedas”, reforça o relatório.
Ao mesmo tempo, Shin chamou a atenção para outro ponto: criptomoedas e stablecoins não alcançam os efeitos de rede integral que usualmente se espera do dinheiro. “O dinheiro é um exemplo mais do que perfeito do que é um círculo virtuoso de amplo uso e aceitação e a característica descentralizada da criptomoeda, por outro lado, leva exatamente ao oposto, ou seja, à fragmentação”, analisou.
O que o BIS propõe para o futuro do sistema monetário
Assim, em vez de criptomoedas, o BIS aponta que as CBDCs sejam a solução para o futuro do sistema monetário. De acordo com o relatório, uma versão digital de dinheiro emitida pelos bancos centrais pode fornecer muitos dos mesmos recursos oferecidos por criptomoedas e stablecoins. Estes podem ser construídos em uma âncora nominal sólida e evitar as limitações e riscos estruturais da criptografia, que incluem congestionamento, altas taxas, fragmentação e pseudo anonimato, características que podem facilitar o abuso e a atividade ilícita.
Para o BIS, os avanços recentes em CBDCs de atacado e varejo e sistemas de pagamento rápido de varejo podem formar a base de um futuro sistema monetário adaptável que promova a inovação do setor privado, permitindo maior inclusão financeira e controle do usuário sobre seus dados.
“A inovação não é apenas uma palavra da moda. Ela nunca deve perder de vista as necessidades concretas dos utilizadores na economia real. Os bancos centrais estão buscando expandir as fronteiras do que é possível, adotando novas capacidades enquanto asseguram que os serviços financeiros sejam estáveis e interoperáveis nacional e internacionalmente”, justificou Shin.
Desse modo, segundo o BIS, o futuro sistema monetário reside na fusão de novas capacidades em torno do núcleo de confiança fornecido pelo banco central, enquanto o setor privado fornecerá as atividades voltadas para o cliente por meio de funções, como a tokenização de dinheiro, instrumentos financeiros e pagamentos instantâneos de varejo através de novas interfaces. Por fim, o relatório também discutiu a criação de uma plataforma multi-CBDCs que permitiria que moedas digitais de vários bancos centrais realizassem transações.
Para projetar e construir esse futuro sistema monetário, o BIS afirma que esforços substanciais estão em andamento, com os bancos centrais trabalhando em conjunto, assim como outras autoridades públicas e privadas, e o banco está apoiando tais esforços.
Leia mais:
CBDCs em 2022: os planos dos bancos centrais para consolidar suas moedas digitais
Moedas digitais: como afetam o sistema financeiro e as soluções dos bancos centrais
Moedas digitais vão transformar pagamentos internacionais, segundo pesquisa do BIS
CBDC: o que falta para uma ampla adoção?
Swift aposta em CBDCs enquanto reguladores esquentam o debate sobre moedas digitais